SOBRE GROUS, GRUAS E PEDIGREE – Ou sobre como as palavras brincam entre si

Uma cena simples, no cotidiano da cidade de São Paulo, chama-nos a atenção por uma inusitada coincidência: uma obra em andamento ao lado de um cruzamento de ruas no bairro Pinheiros, perto de bares e restaurantes de finíssimo bom gosto, por onde circulam milhares de pessoas todos os dias, certamente alheias a essa coincidência. O local é a esquina da Rua dos Pinheiros com a Rua Mateus Grou, e a obra é apenas mais uma entre centenas de outras que podemos vislumbrar em toda essa metrópole que se mostra cada vez mais verticalizada, ocupando espaços aéreos para abrigar um crescente número de moradores e visitantes.

O inusitado começa com o nome de uma dessas ruas: Mateus Grou. Essa personalidade importante para o bairro, cuja influência remonta ao século XVI, carrega o nome de uma elegante ave pernalta muito pouco conhecida entre nós, o grou. Da mesma forma como acontece com o perdigão e a perdiz, a fêmea do grou, a grua, parece ser mais conhecida do que o macho, ainda que seja só no campo das palavras. Acontece que grua também é o nome pelo qual são conhecidos certos tipos de guindastes utilizados em construções, talvez por analogia às longas pernas da ave, que têm uma ligeira semelhança com a forma comprida das partes móveis daquelas máquinas. Eis que temos aí a imagem inusitada no cenário paulistano, em que um “casal” de grou e grua aparecerem num mesmo habitat.

E o “pedigree”, onde é que ele entra nessa história?

Esse é só mais um prolongamento das nossas elucubrações linguísticas, para relacionar com uma outra etimologia bastante interessante, já que estamos tratando de grous e gruas. “Pedigree” é uma palavra de origem francesa que faz referência à raça de animais. Ter pedigree significa ter boa procedência, muitas vezes atestada pela origem do animal em questão e pelos seus traços genéticos característicos. Atualmente existem procedimentos formais para atestar a origem, ou o pedigree, do animal – em alguns casos, até documentos formais assinados pelas associações competentes para tal, principalmente quando se trata de prêmios e transações comerciais.

Em tempos mais remotos, no entanto, quando a burocracia ainda não tinha atingido o status que vigora hoje, como se atestava o pedigree de certos espécimes animais? Assinalando as suas certidões com um pé de grou, ou pé de grua, isto é, utilizando uma marca que se assemelhava a um desenho da pegada dessa ave. Assim, o indivíduo que apresentava um “pied de grue” era um indivíduo que tinha boa procedência, origem, ou seja, um indivíduo de pedigree.

E assim as palavras vão se formando, as histórias das línguas vão se entrelaçando e se enriquecendo cada vez mais. O nome de uma ave vira sobrenome de gente, passa a designar também uma criação tecnológica, a partir daí interage com outras palavras para indicar o grau de autenticidade de raça… e não para por aí. A história das palavras vai se misturando com a história da humanidade, até chegar a um ponto em que já não se sabe mais o que veio primeiro. No fundo, um é reflexo do outro, e tudo vai acontecendo como numa brincadeira incansável em que significantes e significados vão se mesclando, formando a dinâmica e infinita essência da linguagem.

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