SOBRE A LINGUAGEM NEUTRA

“Todes”, “todxs” e “tod@s” são formas que apareceram no português contemporâneo, acompanhadas de outros pronomes e adjetivos que seguem a mesma intenção de estabelecer um gênero neutro em língua portuguesa, concorrendo com a suposta neutralidade marcada pelas terminações masculinas na nossa língua. Afinal, as regras de concordância estão passando por uma transformação dentro da nossa gramática ou isso é só um modismo?

            A ideologia de gênero é um assunto muito importante na sociedade moderna, incluindo os debates acerca da valorização da mulher, assim como tudo que envolve a igualdade dos direitos humanos, como os relativos à comunidade LGBTQIAP+, aos indígenas, aos negros, quilombolas, pobres, crianças, adolescentes, idosos, moradores de rua e quaisquer outros segmentos que integram a nossa sociedade. São debates dessa natureza que movem o nosso sistema jurídico e econômico para a tão sonhada igualdade social, apesar de todas as dificuldades e todos os posicionamentos contrários, que são naturalmente previstos.

            Qualquer língua humana reflete a ideologia da comunidade que a usa. A linguagem verbal é a manifestação viva das ideias que lhe servem de sustentação, carregando em sua estrutura toda uma gama de conceitos e preconceitos que se vão elaborando com o passar dos tempos, muitas vezes até de forma inconsciente. As regras de organização sintática, para além de organizarem o sistema de comunicação, deixam passar os detalhes que não são explícitos, permeando as entrelinhas do discurso normativo.

            Nesse contexto, sem dúvida alguma, a língua portuguesa – como várias outras do mundo inteiro – deixa transparecer um quê de machismo ao normatizar, por exemplo, que o plural masculino + feminino deve ser assinalado pela forma masculina: a expressão “os alunos” pode indicar vários seres do sexo masculino ou vários seres entre os sexos masculino e feminino, ainda que haja um exemplar da espécie somente no masculino. A inexistência de um gênero gramatical neutro, nesse caso, estabelece um caso de indeterminação do sexo dos indivíduos, diferentemente da forma no feminino plural. Na verdade, existem algumas formas neutras na língua portuguesa, mas elas se manifestam através de bem poucas palavras, como os pronomes demonstrativos “isso”, “isto”, “aquilo” e o indefinido “tudo”, mas que, mesmo assim, ainda exigem adjetivo no masculino: “isso é nocivo”, por exemplo.

            E outro detalhe: esse “machismo” gramatical não é exclusividade da língua portuguesa, manifestando-se em regras de concordância nominal em várias outras línguas do mundo, e também em outros aspectos linguísticos: a língua inglesa, por exemplo, que não possui um sistema de concordância tão complexo quanto o português, transmite algumas formas de machismo mesmo na formação de palavras, como o fato de o pronome pessoal “she” (ela) conter, dentro de si, a correspondente forma pronominal masculina “he” (ele). E mais: mesmo algumas línguas criadas artificialmente, como o esperanto, fazem o feminino derivar da correspondente forma masculina: “virino” (mulher) deriva de “viro” (homem). Influência do discurso religioso cristão, segundo o qual a mulher foi criada a partir do homem? Pode ser, mas isso é assunto para um outro estudo.

            E mais um detalhe importante, que poderíamos assinalar como uma premissa básica para a nossa discussão: gênero gramatical não correspondente, necessariamente, a gênero biológico, ou sexo. Na menor parte dos casos, existe essa correlação; mas, se tomarmos a maioria do léxico (conjunto de palavras) de uma língua, o gênero dos vocábulos é algo estabelecido arbitrariamente. Não fosse assim, um mesmo ser ou objeto numa língua apresentaria o mesmo gênero, sem distinção, em outras línguas. No entanto, são clássicos os casos em que os aprendizes de uma língua se “enrolam” trocando os gêneros das palavras, por influência do que é estabelecido na sua língua-mãe. “Leite”, por exemplo, é masculino no português, mas é feminino no espanhol (“la leche”). Em português, “sol” é masculino e “lua” é feminino – por pura arbitrariedade e por uma influência cultural que remonta aos clássicos, já que o sol é maior e mais forte do que lua e os povos antigos enxergaram e estabeleceram essa “lógica” em suas culturas. A maioria dos nomes das árvores frutíferas são femininas, por associação com a maternidade, mesmo em português. E por aí segue o estabelecimento oficial das palavras masculinas e femininas numa língua, bem ao gosto das culturas e das tradições locais.

            Algumas línguas – antigas e modernas, como o grego, o latim e o alemão – apresentam a variação gramatical em três gêneros distintos, mas mesmo nessas línguas o gênero não corresponde ao sexo dos indivíduos a que se referem, justamente porque muitos indivíduos não têm sexo biológico definido. No alemão moderno, por exemplo, os artigos variam em três gêneros distintos: “der” (o) para o masculino, “die” (a) para o feminino e “das” (o/a) para o neutro. Daí temos: “der Mann” (o homem), “die Frau” (a mulher) e “das Kind” (a criança). Até aí (forçando muito a barra para considerar que criança não tem sexo definido!), fica relativamente fácil correlacionar gênero e sexo biológico – mas, ainda temos: “der Kaffee” (o café), masculino / “die Milch” (o leite), feminino / “das Wasser” (a água), neutro. E tanto “água” quanto “cerveja” em alemão são palavras do gênero neutro. Resumindo: uma língua humana não é nada lógica quando se trata do gênero gramatical. Daí, a existência de um gênero neutro dentro de uma língua não equivale a, necessariamente, ausência de machismo ou de qualquer outra coisa.

            Tudo isso para, finalmente, discorrermos um pouco a respeito da linguagem neutra, um movimento recente no nosso meio que tende a empregar a concordância de pronomes e adjetivos de acordo com o gênero biológico dos seres a que as palavras se referem. Além de contestar o machismo linguístico, palavras como “amigue” ou “amigx” tendem a valorizar as pessoas não binárias, ou seja, cujo gênero biológico não se enquadra nem no masculino e nem no feminino. O maior temor dos mais puristas é: esse movimento vai mudar as regras de concordância nominal da língua portuguesa? (In)felizmente, não. Trata-se de um uso linguístico, e não uma violação da estrutura linguística, bem parecido, por exemplo, com o emprego de palavras politicamente corretas, que também é uma questão de uso, não de estruturação morfológica.

            Para que um uso linguístico afete a estrutura da língua a ponto de alterar as regras de organização morfossintática, ele deve ser consagrado pela coletividade, manter-se por muitos anos e – principalmente – mostrar-se uniforme em todas as ocorrências linguísticas, de maneira coesa e coerente. Obviamente, usos linguísticos como a linguagem politicamente correta e a linguagem neutra chamam a atenção da comunidade para aspectos sociais muito importantes, mas eles não atingem a estrutura linguística; são usos que fazemos da língua, e não mudanças que revolucionam a gramática – a menos, claro, que eles evoluam se tornando mais complexos e passem a apresentar as três propriedades acima.

            O mesmo temor exista tempos atrás, quando o computador, a internet e a redes sociais fizeram proliferar expressões como “vc”, “tc”, “tbm” e muitas outras, que são amplamente utilizadas, altamente eficazes quanto aos seus objetivos comunicativos, e nem por isso destronaram os seus correspondentes oficiais “você”, “teclar” e “também”. A estrutura linguística continua a mesma, a norma padrão da língua portuguesa não foi nem um pouco afetada por essas expressões, ninguém deixa de comunicar por escrito melhor ou pior em função do uso desses sinais, e a vida segue o seu fluxo normal.

            Como já dizia há muito tempo um poeta mexicano, Octavio Paz, “quando uma nação vai mal, a primeira coisa que gangrena é a língua”. Portanto, se existe intolerância de gênero, machismo e outras posturas indesejadas, sem dúvida a língua vai refletir essas mazelas. A solução desses problemas, porém, não está na língua, e sim nas pessoas e nas organizações sociais. Não é que movimentos como o da linguagem neutra não tenham a sua utilidade – aliás, eles têm força suficiente para nos fazer questionar, o que é um grande feito; mas eles não alteram a estrutura da língua, tampouco mudam a sociedade sozinhos. Completando o pensamento de Octavio Paz, ouso dizer que a língua é como um termômetro social, revelando o estado de saúde ou de doença em que se encontra um país; mas não é resfriando um termômetro que a febre das intolerâncias vai baixar. É preciso bem mais do que isso. É preciso tratar o corpo social, na sua essência.

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