A CRISE DA BOA ARGUMENTATIVIDADE

Cursinhos preparatórios para concursos e ENEM vêm trabalhando esquemas de redação que, mal empregados pelos concurseiros, banalizam o ato de escrever um texto, principalmente quanto à argumentatividade. Culpa dos cursinhos? Queremos acreditar que não. O problema é do “autor”, que muitas vezes faz desses esquemas verdadeiras receitas-prontas que se encaixam em qualquer tema e que joga para escanteio qualquer indício de criatividade, imaginação e bom senso. Se tempos atrás as “pérolas” de vestibular eram motivo no mínimo de boas risadas, nesse jogo atual, até as pérolas são previsíveis… 

            É uma realidade incontestável entre nós a disputa para ocupar uma vaga no ensino superior público e gratuito, ou até uma vaga em cursos muitos concorridos, como Medicina, mesmo em instituições particulares. De acordo com a Portaria MEC nº 391, de 07 de julho de 2002, todo processo seletivo exige pelo menos uma redação em língua portuguesa, de caráter eliminatório. E muitas vezes a redação apresenta um peso muito grande, como no próprio ENEM. Daí, a motivação para se escrever um bom texto, com tempo marcado, em meio a uma série de outras questões específicas de conteúdos do Ensino Médio para serem resolvidas, cede espaço muitas vezes para alguns subterfúgios.

            O artifício mais empregado ultimamente têm sido as receitas-prontas de redação – práticas, instantâneas (muitas vezes a redação fica pronta em menos de 5 minutos!), elas são ensinadas como cartas coringa, servindo para qualquer tema, conhecido ou desconhecido pelo candidato. E aí desfilam vários pensadores, teorias, obras, frases-feitas, clichês, provérbios. O Leviatã de Thomas Hobbes se encontra com a filosofia de Platão, esbarra na modernidade líquida de Bauman, tropeça na pedra no meio do caminho de Drummond, e por aí segue um carrossel da insensatez humana sem fim. Nesse festival, há quem afirme coisas tais como que o escritor francês Sócrates pregava o cristianismo! Ora, Sócrates não deixou nada escrito, era grego e viveu séculos antes de Cristo…

            Nada contra mencionar teóricos, doutrinas, obras e artistas numa redação, pois isso inclusive é muito recomendável e reforça o nível de argumentatividade de um texto, esse importante elemento da coerência textual. Mas as receitas-prontas não trabalham alguns itens fundamentais, que são: primeiro, tenha certeza sobre o que vai mencionar, se está correto; segundo, tudo isso serve de suporte para um importante elemento que deve aparecer na redação, que é simplesmente a ideia de quem está escrevendo. Aliás, uma redação é justamente para desenvolver e apresentar ideias, mesmo que não sejam necessariamente inéditas.

            Pior do que não argumentar ao desenvolver e apresentar uma ideia é argumentar mal, e pior ainda é argumentar errado. Esses erros bárbaros de raciocínio que andam cometendo nas redações de processos seletivos, mais do que não servirem de argumento para ideia alguma, estão escancarando o fato de que os candidatos estão utilizando atalhos malsucedidos para tentarem mascarar um texto. Ou seja, são provas concretas (e assinadas) de assumida ignorância frente a assuntos da realidade.

            Obviamente existem textos muito bem elaborados e devidamente fundamentados nesses mesmos processos seletivos, não podemos negar. Preocupa-nos, porém, o arrebatamento em massa que acontece de jovens iludidos de que, com uma receita de fazer redação, vão brilhar em uma promissora carreira. Tais receitas podem até ajudar na aprovação num processo não muito concorrido, mas o sucesso na carreira acadêmica depende muito mais do que isso. Vai ser necessário pensar de fato, com propriedade, sem ficar reverberando frases e ideias não tendo a mínima noção do contexto em que elas foram elaboradas. Se Hobbes, Platão, Bauman, Sócrates, Cristo e muitos outros dependessem de outros autores para apresentarem seus argumentos, certamente não fariam utilizando esquemas prontos; eles discutiriam suas ideias – deles mesmos e dos outros – sem nenhuma intenção de encontrar atalhos no sistema.            Não precisamos e nem pretendemos ser brilhantes como esses gênios, mas podemos pelo menos tentar espelhar em suas posturas para sermos mais autênticos. É disso que a nossa sociedade está precisando, em todas as práticas que exigem um mínimo de raciocínio – e por que não começar justamente nas redações de concursos e vestibulares?

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